6.4.09

CEMITÉRIO GRAFITTI




Ninguém deu bola quando o automóvel saiu da garagem de uma das casas da Rua Gralha Azul no parque das indústrias leves em sentido centro leste. A cidade estava parada naquele sábado. Seria uma noite estática e o ar do bairro continuava extravagantemente impregnado pelo cheiro do grande matadouro de frangos da redondeza. Os dois rapazes e a garota estavam munidos com guitarras, alguns amplificadores vagabundos, cervejas, uma bateria sem prato de chimbal e um pequeno tijolo de fumo. Em alguns minutos a banda já estaria no bar chapadão na zona leste da cidade. O velho Passat creme foi estacionado facilmente a cinqüenta metros do bar e a muvuca de tribos urbanas e alguns bêbados locais já haviam tomado conta da calçada e da varanda do bar. Algumas garotas estavam sentadas na mesa de sinuca enquanto alguns rapazes apostavam uma garrafa de pinga na mesa de sinuca ao lado. Já eram umas dez e meia e a primeira banda ainda esperava pelo kit de bateria e alguns aparatos entorpecentes que seriam emprestados pro show que já deveria ter começado.

Os Skull Rockers começam o show por volta da meia noite em uma performance explosiva com seu rockabilly punk eletrificado e garajento. O vocalista/baterista arranca as calças e toca somente de cueca em frente a um publico agressivo e dançante, mas polidamente católico e absurdamente conservador e chapado ao mesmo tempo. A noite termina com uma banda de metal e o bar fecha por volta das três da manha com uma reunião de cúpula do Jardim Interlagos e alguns metaleiros do cincão.

Nesse momento, outro bar no centro da cidade habita uma fração considerável da fauna humana do show do chapadão. Bom movimento ainda na Quintino Bocaiúva. A maioria dos automóveis se deslocando em sentido oeste ou norte. Fim de balada pra maioria das pessoas em suas noites de sorvete, sexo e cerveja pela cidade. Mas não pra moçada que vai ficar no bar até bem mais tarde. Em alguns casos até o amanhecer. No meio da madrugada o cheira da fábrica de frangos avança pra outros bairros e pra algumas partes do centro da cidade também. Quando se desce, por exemplo, tarde da noite no sentido Vila Casoni atravessando a rodoviária e a maternidade, ainda se pode sentir o odor das aves sendo processadas pra largo consumo popular. Pessoas estão acostumadas com a mistura deste cheiro com o cheiro da cidade. Mas a cidade cheira melhor em noites de chuva. Noites em que o céu fica vermelho e o frescor vem à tona em clima de paz e calmaria.

Uma discussão começa no balcão do bar por causa de uma fita cassete, mas é uma discussão entre amigos e a fita mais pesada acaba ganhando. Mais uma hora de barulho ensurdecedor entorpece o ambiente alimentado por um toca fitas corujinha e conversas misturadas com tapas nas mesas de ferro e barulho de copos.

Já é tarde e a minha esperança de escutar um cassete Stooges/Undertones vai pelos ares. Talvez semana que vem. O dono do bar já avisa que ainda existem mais duas na frente da minha e já são quatro horas, portanto não existe a chance de eu escutar o meu som antes de começar a amanhecer. Ele vai enxugando xícaras de café enquanto a moçada enxuga garrafas de Antarctica e Conti. Tudo bem. Isso sempre acontece e essa democracia também deixa as noites legais e geralmente estranhamente divertidas. O bar dá de cara pra rua e na mesma calçada tem um ponto de ônibus e quando não é tão tarde as pessoas passam sempre olhando chocadas ou tirando um sarrinho. Algumas de carro também. Uma vez sentado lá na porta fomos alvejados por pó branco de extintor de incêndio por uns caras que passavam de monza. Foi engraçado, mas eu já tava bem grogue e achei que fosse algo mais sério. Tudo muito rápido e sem noção. Dai ficaram tirando sarro de mim. Estávamos tomando vinho barato sentados no degrau da frente. Não me lembro o que estava tocando no toca fitas. Provavelmente alguma coisa do Extreme Noise Terror.A noite continuou e acabou de manhã com a moçada vazando pro terminal ou pra outros pontos de ônibus. Já eram seis e meia da manhã de domingo e já estava amanhecendo.



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Foi engraçado e estranho quando estávamos marcados pra fazer um show numa noite de sábado na avenida leste-oeste. Por volta das oito e meia o som já havia sido passado e o palco estava pronto pras duas bandas da noite. Eu resolvi voltar pra casa e não deixar o meu baixo com o equipamento no palco. Eu não tenho esse hábito, a não que eu não tenha escolha. Fui deixado em casa pelo guitarrista da banda e por volta das nove e meia eu já estava novamente tirando um cochilo. Era na época em que eu morava no centro e foi no final de 1996. Eu capotei pesado e não me lembro da minha fita cassete enroscando no cabeçote do velho Toshiba estéreo. Francamente não me lembro se era uma fita dos Dead Boys/ Voidoids ou do The Clash. Acordei assustado e sem rumo. Talvez já fosse mais de meia noite. O telefone não tocou, ninguém tocou a campainha, ninguém gritou da rua, ninguém apareceu pra falar nada. Olhei no relógio e já era quase uma da manhã. Corri, vesti meu jeans e meu all star. Coloquei uma jaqueta jeans e meus óculos. Peguei meu baixo e sai sorumbático pra rua. Eu havia esquecido a porta aberta e a chave na porta. Voltei da esquina e consegui entrar. Subi, peguei a chave e tranquei a porta. Voltei e sai em disparada. Quando cheguei na Avenida Duque de Caxias e virei à esquerda, imediatamente dei de cara com quatro caras que vinham andando lentamente na minha direção. Eles logo fecharam uma parede contra mim e vieram me perguntar se eu tinha um passe e cigarro e um real... Eu virei pra fugir pelo lado errado, o lado da porta de lata de uma loja de ração pra animais... Já levei uma na face direita e meus óculos entortaram. Agarrei meu baixo pela alça da capa e pelo braço. Olhei pra cima e levei outro murro na testa. Esse me deixou zonzo e me fez esquecer o que tava acontecendo. Alguns segundos depois, levei uma solada (provavelmente de M2000) no meio da cara. Meu nariz doía e sangrava. Continuei olhando pra esquerda e vi alguns carros passando em velocidade. Olhei pro lado direito e os vi atravessando a rua. Seguiram andando lentamente. Um deles acendia um cigarro e o outro gesticulava um chute.


Segui andando pela duque no sentido leste-oeste. Meu rosto não sangrava muito, mas eu já estava bem sujo. Resolvi passar na adega pra me limpar no banheiro. O bar estava vazio, mas havia um casal de namorados que discutiam no orelhão e também uma mesa com dois tiozinhos em fim de carreira na varanda. Passei por eles e entrei por dentro do bar. Seu Zé estava atrás do balcão enchendo duas garrafas de vinho e não me deu atenção. Fui direto pro banheiro no fundo do bar. Não havia espelho. Abri a torneira, enchi as mãos de água e lavei meu rosto. Minha testa estava levemente ralada, meu nariz não havia quebrado, mas estava dolorido. Minha cabeça doía e tinha um galo na parte de trás. Tentei desentortar meus óculos como pude.

Andei a Duque até chegar na Leste Oeste. Já havia perdido a noção de tempo e pra mim já havia tudo terminado. Eu realmente estava mais preocupado com o show do que com meus óculos ou meu estado de espírito. Eu só escutava The Clash nesses dias e eu tava loco pra executar Clash City Rockers e Garageland no meio do repertório.

Cheguei no tattoo bar e vi uma muvuca na porta de entrada. O som tava alto lá dentro e deu pra perceber que tocava alguma coisa bem horrível no sistema de som.

---- que horas são por favor?
---- não sei não. Mais de uma e meia!
---- vc sabe se alguém já tocou?
---- não sei não. Eu trabalho no cachorro quente ali em cima. Toca rock aqui né?
---- acho que sim. Respondi.


Na portaria havia um cara mal encarado e um segurança com cara de quem não dormia há anos.

---- eu vou tocar aqui hoje.
---- ah ta. Vai tocar o que?
---- eu toco na segunda banda!
---- de que banda você é?
---- The Cherry Bomb. Posso entrar?
---- nossa cara, o que aconteceu com você? Andou brigando na rua?
---- levei um pau na duque.
---- hahahahahhaha, entra ai.




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Gosto das demos do Transformer do Lou Reed, são acústicas, simples e muito bonitas. Transformer é um disco incrível. Eu escuto há anos e nunca fico de saco cheio. Ainda prefiro Andy's Chest e Ny Telephone Conversation do que qualquer porcaria radiofônica transmitida pelas nossas generosas e jabaculentas rádios. Esse disco também cai muito bem com uma bela macarronada e um vinho.

Escutei um estalo bem alto numa noite de sábado. Sozinho em casa por volta da meia noite ainda decidindo o que ia fazer. Talvez não fosse sair pra lugar algum. Talvez pro Valentino e de repente uma carona pro Potiguá em algum fusca depenado. A noite foi estranha a partir das duas da manha. O estalo era o portão do estacionamento comercial ao lado. Um inferno de lugar barulhento 24 horas por dia. Estalos, gente falando alto, playboys buzinando bêbados e brigas de namorados entorpecidos de caipirinha e tédio. Alguns pratos voavam do primeiro andar às vezes. Eu adorava o barulho dos cacos estilhaçando no grande telhado de zinco. Tudo parava por cinco segundos. Dava pra escutar as janelas do edifício se abrindo na madrugada. Era delicioso.

Não fazia calor como na maior parte do tempo. As garotas estavam belas no Valentino em clima noir. Algumas gatinhas da UEL ficam bem européias nessa época do ano. O inverno era interessante quando os bons tempos do Valentino ainda estavam em voga. Mas não sei como anda tudo isso ultimamente. Algo me diz que esses tempos não voltam em breve.

O bar tava cheio. Algumas garotas ainda estavam esnobes com seus copinhos de kaiser quente. Elas estavam pescando caras bonitos e ricos na noite londrinense. Mas felizmente nessa época ainda não tocavam Strokes no Valentino. Talvez estivesse tocando Cake ou alguma coisa do Tim Maia. Não me lembro. Mas lembro do comportamento noir das garotas recém chegadas das peças do FILO depois da meia noite. Tudo bem sexy underground.Não escutei os tiros de dentro do bar. Mas vi que a coisa era feia. Algumas pessoas gritavam alto na varanda e na parte da frente. Todo mundo se amontoou e correu pra ver o que tava acontecendo. Não deu pra ver na hora.O assassino correu bem rápido após o segundo disparo. O primeiro pegou de raspão na perna de um cliente que comia algumas torradas e esperava por mais uma Kaiser. O segundo foi na cabeça e à queima roupa. Quando a ambulância chegou quase meia hora depois o assassino já devia estar em casa, assistindo corujão.

Achei que fosse melhor dar um pulo no Potiguá e esperar as notícias sangrentas na segunda feira.
Não teve como. Enquanto eu dava no pé eu escutava as pessoas falando alto que o cara estava gravemente ferido e provavelmente morto.Andei lentamente por uns quarenta minutos me desviando de automóveis abusivos e pessoas permissivas naquela noite de inverno em Londrina.
E fiz o caminho todo pela rua Paranaguá até chegar em algum ponto da Quintino e do nada avisto Robson Leão parado na calçada em frente ao posto de gasolina. Aquele em frente ao gigantesco terreno baldio.


---- que tu ta fazendo aqui cara?
---- to aqui esperando uma gata.
---- que gata?
---- uma que eu conheci no 145.
---- não tá com frio não cara?
---- frio e psicológico.
---- ta a fim de dar um pulo no Potiguá?
---- to nada. Só tem homem lá e eu não gosto de fumaça de cigarro.

---- é por isso que você não vai mais no Valentino? acho que mataram alguém lá uma hora atrás.
---- sério? Caralho, briga?
---- não. Parece que foram duas balas de garrucha ou 32 sei lá. Tiros a queima roupa.
---- vamo pro Potiguá?
---- vou com você até a esquina dai vou pra casa.


Seguimos mais uns duzentos metros e ele virou à esquerda, nos despedimos de longe. Eu sabia que ele iria voltar pro posto de gasolina. Ele esperava por alguém. Ele e sua camiseta manga cavada dos Sex Pistols naquele frio.

Andei mais uns dez minutos e logo que chequei na esquina já dava pra escutar o barulho das pessoas falando alto e bebendo no bar. Entrei e fui direto no creator.

---- fala creator!!!
---- fala o que? to ligado que você me acha um filho da puta.
---- e ai doni beleza? vê uma Antarctica pra mim?
---- você vai me dar um copo da tua breja?
---- mas o teu ta cheio cara.
---- não interessa. Só to perguntando se você vai me dar um copo caralho.
---- vou dar nada. A tua ta na metade.


Fiquei ali conversando com ele e prestando atenção no cheiro do caldo de mocotó e café que impregnava o bar. No toca fitas rolava o velho cassete dos The Ventures ao vivo no japão incansavelmente em alto volume. Ainda existe a esperança de algumas garotas aparecerem pruma cerveja na madruga.




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Gosto quando as noites estão mais frescas e o céu num tom mais avermelhado, me conforta a cabeça. Gosto da noite em época de chuvas de verão. As pancadas vêm pra aliviar o calor e a corrosão cerebral em meio ao sonho da cidade. Eu sonho na cidade. Eu vivo nela e minha cabeça não espera o ritmo dela. Não sou o único cara. Gosto da parte do pontilhão da Celso Garcia que liga o centro ao aeroporto e à zona leste. Gosto do azul cruel dos parapeitos enferrujados, dos grandes barrancos e toda a coisa do movimento da Via Expressa. Longos espaços com grama, mato e lixo.
Sempre me vem à tona todo o barulho dos cachorros nos quintais da Vila Brasil e dos gatos soltos. Ainda se vê mais gatos mortos na sarjeta do que cães. Essa é a sina de muitos deles. Talvez tenha sido assim também com a minha Ninon. Ela desapareceu após 17 anos na ativa. Os automóveis também são uma constante na auto-afirmação de alguns seres humanos. A velocidade que te fascina e me aterroriza. Não consigo esquecer a cidade e algumas de suas lendas urbanas. Criminosos locais e toda a corja de canastrões, políticos profissionais, trogloditas e auto-protecionistas ditando as regras na ex capital mundial do café. Alguém se lembra do golpe do bilhete premiado, jogatina com bolinhas na Praça Rocha Pombo, sobreviventes picaretas no sol da tarde em clima de correria nas proximidades do hotel Berlin? E dos restaurantes chineses que talvez abriguem grandes e violentas apostas em ritmo de artes marciais depois da meia noite? Gosto também do peixe elétrico e das pomadas vendidas no calçadão. Essas pomadas saram tudo e a todos. Daí no final o promotor de vendas salta entre uma redoma de facas e como uma tartaruga ninja ele sai intacto e vitorioso de sua longa conversa performática. Gênio. Daí com certeza após todo o trabalho do dia ele volte satisfeito e enobrecidamente cansado pro seu quarto no fundo do hotel Cravinho.Uvas verdes refrescam mais ainda essa tarde de segunda feira. As uvas do leste da cidade são aparentemente mais caras, mas são mais doces. Eu comprava sempre ao lado da estação de Turnpike Lane. Eram realmente bem baratas, mas azedas e marrentas. Pago o dobro do preço aqui em Hackney, mas são bem melhores. Boas uvas também me fazem lembrar feiras e feiras, me fazem lembrar do grande quadrilátero do cemitério São Pedro. O mesmo cemitério dos velhos túmulos em cores kitsch e das baratas gigantes. Alguns levam uma pequena placa - perpétua, talvez signifique - pra sempre.já dei uma espiada no ossário lá e talvez aqueles ossos não tiveram seus túmulos perpetuados. Mas que diferença isso faz a essa altura do campeonato?A cidade é ainda muito nova e ensolarada pra se ter um cemitério gótico ou algo que o valha. Não sou apaixonado por cemitérios, mas sempre gostei de cruzar o cemitério São Pedro. Às vezes pensava em atravessar na madrugada pra ver se realmente existiam todos aqueles dobermans soltos que o Osmar me falava. Toda vez que eu passava por lá depois da meia noite eu dava uma espiadela sobre o muro e nunca vi nada.
Nunca arrisquei o passeio simplesmente pra não correr o risco de ser comparado a um ladrão de túmulos ou coisa assim.
Gostaria de um dia ser enterrado lá. Bem pertinho da pizzaria. Gosto daquela parte. É meio barulhento, mas não dá nada. Talvez o problema maior sejam mesmo as baratas gigantes. Elas simplesmente dominam o pedaço em clima de gangues. Imagina só. Um cemitério que abriga um espaço de quatro quadras talvez deva ser do tamanho de Nova Iorque pras baratas.